Alguma coisa acontece: cultura acessível
Você sabe como é o trabalho de audiodescrição e como funciona esse recurso de acessibilidade dentro da cultura?
Nota da editora: a edição dessa semana retoma uma editoria de conteúdo que gosto muito, mas estava um pouco adormecida: as entrevistas com diferentes pessoas sobre cultura nos mais diversos contextos, âmbitos e cenários. E esse retorno não poderia ser mais especial, já que adentramos um universo nem sempre muito falado, mas de extrema importância para garantir o acesso de todos à arte em suas mais diversas manifestações. A fim de conhecer e explorar um dos recursos de acessibilidade dentro da cultura, a redatora Brunella conversou com a queridíssima audiodescritora Vanessa Delfino sobre como é traduzir em palavras as imagens de filmes, exposições, jogos de futebol e até desfiles de Carnaval. Boa leitura!
👀 Perfil SP:
Por Brunella Nunes, redatora do @vivasp_cultura
Nos últimos tempos temos visto cada vez mais instituições culturais e festivais investindo em acessibilidade. Vamos combinar, já não era sem tempo, né? Para entender um pouco mais sobre os recursos de acessibilidade, quem conta pra gente sobre o curioso e minucioso trabalho de audiodescrição em produtos culturais, de filmes a exposições, é a Vanessa Delfino, audiodescritora roteirista, tradutora, revisora e locutora.
No auge da realização profissional, Vanessa divide com a gente os caminhos nada lineares até chegar a uma profissão movida, literalmente, a amor. Mais do que tornar as obras acessíveis, a audiodescrição é um exercício interessante para todos os públicos conhecerem e reconhecerem em cena, resgatarem a sensação de uma radionovela, além de ser um apoio para estudar outras línguas. Sabia dessa? A gente também não, e num papo informal, já somamos alguns bons aprendizados.
Conta aí, Vanessa!
Como você chegou no interesse pela audiodescrição, algo tão específico, na sua trajetória de vida e profissão?
"Eu sempre tive interesse pela arte e pela cultura por influência do meu pai, que vivia me levando ao cinema, exposições, parques e ainda me dava livros (de presente), lia e comentava a história comigo. Outra coisa legal era que no dia de faxina em casa, ele sempre colocar alguma música no último volume e contava alguma história ligada à música em questão. Ou seja, não tinha como eu não enveredar pelo caminho cultural.
Porém, infelizmente, como acontece com tantas pessoas, esse mesmo pai, junto a minha mãe, colocaram na minha cabeça que eu deveria fazer algo para ganhar dinheiro e não simplesmente por “gostar”. E, claro, “arte e cultura não dão dinheiro”, segundo eles e tantas outras pessoas que ainda pensam assim. Eu queria escrever e acabei me formando em Letras porque foi a forma que encontrei de ficar perto da área que gostava e meio que garantir um futuro profissional, como professora ou como tradutora, embora não tivesse a intenção.
Enfim, acabei desenvolvendo uma insegurança, sem saber direito que caminho seguir, e passei dos 20 aos 30 fazendo um monte de coisa: entrava e saía de emprego, testando de tudo e tentando me encaixar. Fui professora, secretária, recepcionista, garçonete, vendedora, tradutora, atriz…
Tudo mudou quando meu pai morreu. E morreu frustrado por não ter realizado os sonhos dele, por ter vivido apenas para cumprir um papel social, segundo um desabafo próprio, e isso me deu um choque enorme, pois foi aí que percebi que a gente não tem todo o tempo do mundo. É óbvio isso, mas é tão comum a gente ouvir “faz isso e DEPOIS, quando você estiver estabilizada, aí você faz o que quer”. Mas e se esse “depois” não vier? Ou se vier, mas por algum motivo você não puder viver o que tanto desejava?
Foi pensando nisso que decidi arriscar correr atrás do que queria, que não sabia exatamente o que era, só sabia que queria escrever, queria trabalhar com arte e cultura, em home office para evitar o trânsito louco de São Paulo, com horário flexível porque não gosto muito de rotina [risos]. Nisso de tentar uma coisa aqui, outra ali acabei conhecendo um rapaz cego na internet que gostava muito de cinema e fiquei interessada em saber como ele fazia para assistir aos filmes sem enxergar.
A gente foi conversando, trocando ideia e viramos namorados. Ele trabalha com audiodescrição também e disse que o recurso permitia o acesso às obras que ele queria assistir. Era bem comum a gente sair juntos e eu descrever tudo o que via pelo caminho; também descrevia os filmes e as séries que assistíamos juntos quando o recurso não estava disponível.
Percebendo minha habilidade, ele me incentivou a tentar entrar na área e acabei aceitando a ideia. Fiz um curso e me apaixonei tanto que passei a descrever cartazes de filmes e publicar no Instagram, em um perfil chamado “Domínio Acessível”. Foi uma forma de treinar e também de criar um portfólio para divulgar para as empresas.
Deu tão certo que em pouco tempo já estava fazendo vários trabalhos na área. Recentemente descrevi duas séries para a Netflix, fiz a audiodescrição ao vivo do Carnaval de São Paulo 2024, um jogo do São Paulo e Palmeiras no Estádio do Morumbi, da peça “Bárbara”, com a Marisa Orth, de palestras em museus, dentre vários outros trabalhos. Neste momento estou fazendo a audiodescrição da Feira Preta e de mais duas séries para a Netflix.
Ou seja, no final consegui o que queria: trabalhar escrevendo, com arte e cultura, de casa e em horário flexível. De bônus ainda ganho para ir em eventos super legais descrevê-los e contribuo com a acessibilidade [risos].
Como é o processo do seu trabalho em audiodescrição? Pode nos dar uma ideia da rotina profissional?
Depende do tipo de trabalho. Por exemplo: se eu vou descrever um filme, uma série, um documentário ou imagens estáticas, primeiro vejo o prazo de cada um para organizar e saber por qual devo começar. Depois estudo o tema para descrever com a maior fidelidade e clareza possível e, por fim, documento tudo em um software (depende do que a empresa contratante pede), sincronizando com o tempo da obra.
Um detalhe muito importante da audiodescrição de conteúdos audiovisuais é que a gente não deve sobrepor as falas, mas sim descrever nos espaços entre uma pausa e outra.
A audiodescrição deve ser um complemento da obra para a pessoa com deficiência visual, e não algo à parte, entende? O objetivo é que qualquer pessoa, independente de ter deficiência visual ou não, consiga compreender perfeitamente o que está acontecendo, sem precisar ver, apenas ouvindo a audiodescrição.
Agora, em relação aos eventos presencias, também preciso estudar o material com uma certa antecedência. Se é uma peça de teatro, o ideal é que eu assista antes e tenha uma versão em vídeo da peça gravada para memorizar as deixas e conseguir descrever ao vivo; se é uma orquestra, preciso saber quais instrumentos serão tocados e a posição de cada músico no palco.
Geralmente recebemos essas informações antes para não sermos pegos de surpresa e acabarmos gaguejando ou ficando em dúvida na hora de descrever. A exceção, recentemente, foi no jogo do São Paulo x Palmeiras, no estádio do Morumbi, no qual só descobri a escalação 5 minutos antes do jogo começar. Foi um desespero [risos].
E um exemplo desafiador, porém, que deu muito certo, foi o do Carnaval de São Paulo 2024. Éramos apenas três profissionais se revezando e recebemos as pastas com as informações sobre cada uma das escolas de samba, mas algumas coisas a gente só descobriu na hora, como a cor das fantasias, a organização das baterias e dos carros alegóricos. Nesse caso, só foi possível eu descrever o desfile por já ter um conhecimento prévio não só de carnaval, que eu gosto muito, mas dos próprios elementos culturais apresentados por cada escola.
Por exemplo: teve um carro alegórico que homenageou os orixás. O documento da escola não dizia quais eram, mas eu sabia por experiência de vida, indo a terreiros e lido sobre. Se eu dependesse do documento, provavelmente só diria “escultura de um pessoa negra segurando um espelho na mão”, algo assim, sem detalhar que se tratava de Oxum. A pessoa com deficiência visual não saberia que a escola estava homenageando uma divindade.
Ou seja, para muitos trabalhos é necessário ter um conhecimento cultural amplo para a gente poder passar a descrição da forma mais completa possível, não é só dizer: “tem um objeto grande representando uma pessoa”. A gente diz que objeto é esse, como ele é e o que representa. Sendo assim, pessoas sem deficiência também podem fazer uso da audiodescrição como forma de se aprofundarem no conhecimento da obra, da peça, da orquestra, do show, da exposição e do que tiver o recurso disponível.
Tenho visto cada vez mais pessoas sem deficiência visual fazendo uso da audiodescrição e acho ótimo, porque, no fundo, embora ela seja pensada para um público específico, é para todos.
E como as pessoas podem ter contato com a audiodescrição na cultura? Tem algum filme ou exposição com audiodescrição para indicar aos curiosos com ou sem deficiência visual?
Tem vários. Nos cinemas é possível assistir a filmes com audiodescrição via aplicativos como MovieReading, MobiLoad e Greta. É só baixar, procurar o filme que quer assistir em um dos três aplicativos, que só funcionam no cinema, para sincronizar com o filme no momento em que começar a sessão.
Agora, se a pessoa quiser assistir em casa, tem alguns serviços de streaming que investem em audiodescrição, sendo que o principal é a Netflix, incluindo o recurso de audiodescrição em boa parte do catálogo. Recentemente, eu fiz a audiodescrição do filme “Esquadrão 6” e das séries “AlRawabi School for Girls” e “Moradores Indesejados”. Para assistir com audiodescrição é só escolher o idioma “português com audiodescrição”. Aliás, para quem quiser aprender outra língua, ajuda muito assistir a uma obra com audiodescrição em inglês ou em espanhol, por exemplo.
Uma dica que dou para quem quiser testar a audiodescrição é assistir a uma dessas séries ou qualquer outra que tenha o recurso disponível e ir fazendo outras coisas, como caminhar, limpar a casa, cozinhar… Vai ser como ouvir uma novela de rádio! [risos].
Tem também a exposição “Claudia Andujar: Cosmovisão”, no Itaú Cultural, que eu fiz uma mistura de roteiro de audiodescrição com audioguia e em breve terá a peça “A Noviça Rebelde”, que atualmente está em cartaz no Rio de Janeiro e que escrevi o roteiro de audiodescrição também.
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E aí, já conhecia sobre o trabalho e as tantas vertentes da audiodescrição?
Vanessa Delfino é apaixonada por cultura desde sempre, audiodescritora, roteirista, tradutora, revisora e locutora. É possível acompanhar mais sobre seu trabalho, ou falar diretamente com ela, em @van_delfi.
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Uma profissão da qual eu sabia 0 coisas e agora sei algumas coisas hahah a gente sai sempre ganhando dessa news!
Saudades do Perfil!!! E que maneira sensacional de retornar! 👏👏👏